22 de ago. de 2020

"Terapias de reversão" e as causas do sofrimento humano


Quero começar esse texto com o seguinte questionamento: E se uma pessoa quiser deixar de ser LGBT? Ela poderia? Se uma pessoa sofre por ser lésbica, transexual, bissexual, gay..., seria legítimo ela buscar ajuda para deixar de ser? Antes de responder esta pergunta gostaria de fazer outra: Qual a explicação para o sofrimento humano? Essa pergunta é mais complicada do que parece, pois, a depender da maneira como entendemos o comportamento humano, a resposta a essa pergunta pode variar ou ser uma só.

Vamos começar com a maneira mais ingênua de encarar nossa pergunta: “o sofrimento é culpa da própria pessoa, se ela sofre é porque não aguenta, porque não é forte o bastante, porque se deixa abalar, porque não tem estrutura para lidar com a situação”. Como já vimos em textos anteriores, a análise do comportamento não busca explicações dentro do indivíduo, mas sim na relação que este estabelece com o mundo ao seu redor. Tentamos entender as emoções e comportamentos a partir das circunstâncias externas que estão ligadas a eles (SKINNER, 2003). Precisamos olhar para o que aconteceu e está acontecendo para explicarmos porque uma pessoa está em sofrimento.

Tá, mas que diferença faz na prática essas duas formas de explicação? Ora, se olhamos para um problema de uma maneira ingênua, nossa solução para este problema também será ingênua. Se pensarmos que a causa do sofrimento de um indivíduo está nele mesmo, se eu quiser parar este sofrimento, eu preciso necessariamente mudar esse indivíduo. Basta tornar esta pessoa mais forte, determinada, mais leve, resiliente, ou qualquer outro termo que esteja em alta no mercado. Desse jeito, se ignoram as circunstancias externas, e elas continuam ali, intocadas.

Se me permitem uma metáfora, é como ter rinite e morar em uma casa empoeirada. Mas ao invés de se livrar da sujeira (circunstância externa) você tenta de tudo para evitar não ser afetado por ela. Finge que a poeira não está ali, medita um pouco para tentar esquecer, assiste a uma palestra sobre como ser o mestre do seu próprio nariz, tenta mudar suas crenças internas para deixar de acreditar na existência da poeira, ingere toneladas de remédio para alergia. Tudo isso, mas a casa continua acumulando poeira, e uma hora ou outra a rinite vai te pegar, ou alguém que está a te visitar. A coisa com as circunstancias externas é que não é só a gente que é afetado por elas.

E o que isso tudo tem a ver com LGBTs? Bom, tem gente que ainda acha que se um LGBT está sofrendo por conta de sua sexualidade, deveria mudá-la.

A homossexualidade deixou de ser considerada uma doença pela OMS em 1990. Com isso, as chamadas “terapias de reversão” perderam força no campo científico. Essas terapias utilizavam-se de teorias comportamentais para realizar “tratamentos” por meio de estimulações aversivas como choques, na tentativa de mudar a sexualidade de alguém (GARCIA; MATTOS, 2019). Os resultados eram catastróficos, além da comprovada ineficácia, inúmeros participantes destas terapias desenvolveram depressão e ideações suicidas. No entanto, ainda hoje existe uma prática parecida, denominada de “terapias de conversão”. Essas se iniciaram com a filiação de psicólogos a grupos religiosos na tentativa de oferecer tratamentos que pudessem mudar a orientação sexual de alguém e torna-la heterossexual (GARCIA; MATTOS, 2019). A justificativa não é mais científica, mas de uma moral religiosa. O Conselho Federal de Psicologia já se posicionou contra essa prática, e proíbe os psicólogos de atuar nessa frente (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, Resolução 01/99 de 1999).

Esse embate ainda rende muita discussão, e do lado das pessoas que defendem estas práticas clandestinas existe um forte argumento de que essa proibição retira a liberdade de alguém buscar ajuda caso queira deixar de ser homossexual (GARCIA; MATTOS, 2019). Esse argumento se pauta na ideia de que se uma pessoa não está satisfeita com sua sexualidade, ela deveria poder ter a chance de mudá-la. Aí eu pergunto: porque alguém gostaria de deixar de ser LGBT? Porque alguém está em sofrimento por ser LGBT?

Lembra da discussão sobre o sofrimento humano no começo do texto? Se quisermos buscar as causas do sofrimento humano precisamos olhar para o contexto, para as condições externas que causam esse sofrimento. E tem um filme que se encaixa perfeitamente nesse assunto.

O filme Orações para Bobby (Prayers for Bobby no original em inglês) é um filme de 2009, que conta a história baseada em fatos reais de Bobby Griffin, um jovem gay de 20 anos que se suicidou. A relação com sua mãe foi o foco do filme. Ela era uma mulher religiosa que, depois de descobrir a sexualidade do filho, tentou de tudo para “curá-lo”. Desde orações até psiquiatria, na tentativa de mudar quem seu filho era. 


A questão que eu trago aqui é que no começo do filme Bobby estava angustiado. Logo no começo do filme ele pensa em se matar ao perceber que de fato se atrai por homens. Sua mãe o chamava de impuro, pecador, e que a alma dele não seria salva se ele fosse desse jeito. Bobby no começo queria mudar, e participou das tentativas de sua mãe. O motivo pelo qual ele fez isso foi que, após sua mãe descobrir sua sexualidade, ela parou de trata-lo da maneira como tratava, as coisas tinham mudado, ela não aceitava quem o filho era. Ele queria que a mãe o aceitasse, queria que as coisas fossem como antes. Bobby encontrou orgulho em quem era, mas as coisas não mudaram em sua família. Depois de seu suicídio sua mãe se informou melhor sobre o assunto. Encontrou uma igreja que tinha uma interpretação diferente da dela, e com um grupo de pais e amigos de LGBTs ela compreendeu que não havia nada errado com seu filho, inclusive começou a lutar pelos direitos LGBT depois disso. Bobby não sofria porque era gay, Bobby sofria por intolerância religiosa, por ter ouvido a vida toda que homossexualidade era pecado.

A angústia por ser LGBT é causada por uma sociedade que odeia e ataca LGBTs. A “cura” para essa angústia não está em fazer alguém não ser mais LGBT, não está no indivíduo, está nas relações que esse indivíduo estabelece com esse meio. Precisamos mudar o meio. Se transexuais sofrem por medo dos constantes assassinatos a essa população, o que precisa ser mudado é a negligência para com sua violência, se uma lésbica sente vergonha de si, é preciso mudar o discurso lesbofóbico que causou sua vergonha, se um bissexual sofre por ser taxado de infiel e promíscuo, é preciso mudar os discursos bifóbicos que são constantemente negligenciados, se um gay sofre por medo de não conseguir formar uma família, precisamos mudar os moldes heteronormativos de família, e garantir as condições legais para isso.

Perceba que aqui eu sequer entrei na discussão a respeito de ser ou não uma escolha, de ser ou não possível de ser mudado. Não importa. Nosso compromisso é para com as razões do sofrimento humano. A prática de um psicólogo sério e compromissado com o seu código de ética não é o de convencer alguém a mudar seu gênero ou sexualidade, mas ajudá-lo a lidar com seu sofrimento e a estabelecer condições para que seu cliente possa fazer as mudanças em seu meio, quando estas forem possíveis. Só que seu trabalho (o de todos na verdade) precisa ir além, pois enquanto vivermos em um dos países que mais mata LGBTs no mundo esse sofrimento nunca vai deixar de existir. Precisamos combater práticas transfóbicas, lesbofóbicas, bifóbicas e homofóbicas. Algumas circunstâncias externas a gente não consegue mudar sozinho, e por isso, a luta nunca pode ser solitária.


Notas em behaviorês:

 *  A autora Táhcita Medrado Mizael tem um artigo de 2018 que analisa a produção científica da análise do comportamento com relação à homossexualidade, apontando avanços e lacunas que novas pesquisas sobre o assunto poderiam preencher. Você pode acessá-la no link: https://www.revistaperspectivas.org/perspectivas/article/download/393/275/

* O Podcast ACearáCast tem um episódio sobre cura gay e a posição da análise do comportamento. Link para o episódio: https://soundcloud.com/acearacast/acearacast-ep-49-cura-gay

 

Referências

CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Resolução CFP N° 001/99, de 22 de março de 1999. Estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da Orientação Sexual. Disponível em <https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/1999/03/resolucao1999_1.pdf>.

GARCIA, M. R. V.; MATTOS, A. R. “Terapias de Conversão”: Histórico da (Des)Patologização das Homossexualidades e Embates Jurídicos Contemporâneos. Psicologia: Ciência e profissão, v. 39, n. 3, p. 49 – 61, 2019.

SKINNER, B. F. Emoção. In:_____. Ciência e comportamento humano. São Paulo: Martins Fontes. 2003. p. 175 – 186.


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