Quero
começar esse texto com o seguinte questionamento: E se uma pessoa quiser deixar
de ser LGBT? Ela poderia? Se uma pessoa sofre por ser lésbica, transexual,
bissexual, gay..., seria legítimo ela buscar ajuda para deixar de ser? Antes de
responder esta pergunta gostaria de fazer outra: Qual a explicação para o
sofrimento humano? Essa pergunta é mais complicada do que parece, pois, a
depender da maneira como entendemos o comportamento humano, a resposta a essa
pergunta pode variar ou ser uma só.
Vamos
começar com a maneira mais ingênua de encarar nossa pergunta: “o sofrimento é
culpa da própria pessoa, se ela sofre é porque não aguenta, porque não é forte
o bastante, porque se deixa abalar, porque não tem estrutura para lidar com a
situação”. Como já vimos em textos anteriores, a análise do comportamento não
busca explicações dentro do indivíduo, mas sim na relação que este estabelece
com o mundo ao seu redor. Tentamos entender as emoções e comportamentos a
partir das circunstâncias externas que estão ligadas a eles (SKINNER, 2003).
Precisamos olhar para o que aconteceu e está acontecendo para explicarmos
porque uma pessoa está em sofrimento.
Tá,
mas que diferença faz na prática essas duas formas de explicação? Ora, se
olhamos para um problema de uma maneira ingênua, nossa solução para este
problema também será ingênua. Se pensarmos que a causa do sofrimento de um
indivíduo está nele mesmo, se eu quiser parar este sofrimento, eu preciso
necessariamente mudar esse indivíduo. Basta tornar esta pessoa mais forte,
determinada, mais leve, resiliente, ou qualquer outro termo que esteja em alta
no mercado. Desse jeito, se ignoram as circunstancias externas, e elas
continuam ali, intocadas.
Se
me permitem uma metáfora, é como ter rinite e morar em uma casa empoeirada. Mas
ao invés de se livrar da sujeira (circunstância externa) você tenta de tudo
para evitar não ser afetado por ela. Finge que a poeira não está ali, medita um
pouco para tentar esquecer, assiste a uma palestra sobre como ser o mestre do
seu próprio nariz, tenta mudar suas crenças internas para deixar de acreditar
na existência da poeira, ingere toneladas de remédio para alergia. Tudo isso,
mas a casa continua acumulando poeira, e uma hora ou outra a rinite vai te
pegar, ou alguém que está a te visitar. A coisa com as circunstancias externas
é que não é só a gente que é afetado por elas.
E
o que isso tudo tem a ver com LGBTs? Bom, tem gente que ainda acha que se um
LGBT está sofrendo por conta de sua sexualidade, deveria mudá-la.
A
homossexualidade deixou de ser considerada uma doença pela OMS em 1990. Com
isso, as chamadas “terapias de reversão” perderam força no campo científico. Essas
terapias utilizavam-se de teorias comportamentais para realizar “tratamentos”
por meio de estimulações aversivas como choques, na tentativa de mudar a
sexualidade de alguém (GARCIA; MATTOS, 2019). Os resultados eram catastróficos,
além da comprovada ineficácia, inúmeros participantes destas terapias
desenvolveram depressão e ideações suicidas. No entanto, ainda hoje existe uma
prática parecida, denominada de “terapias de conversão”. Essas se iniciaram com
a filiação de psicólogos a grupos religiosos na tentativa de oferecer
tratamentos que pudessem mudar a orientação sexual de alguém e torna-la heterossexual
(GARCIA; MATTOS, 2019). A justificativa não é mais científica, mas de uma moral
religiosa. O Conselho Federal de Psicologia já se posicionou contra essa
prática, e proíbe os psicólogos de atuar nessa frente (CONSELHO FEDERAL DE
PSICOLOGIA, Resolução 01/99 de 1999).
Esse
embate ainda rende muita discussão, e do lado das pessoas que defendem estas
práticas clandestinas existe um forte argumento de que essa proibição retira a
liberdade de alguém buscar ajuda caso queira deixar de ser homossexual (GARCIA;
MATTOS, 2019). Esse argumento se pauta na ideia de que se uma pessoa não está
satisfeita com sua sexualidade, ela deveria poder ter a chance de mudá-la. Aí
eu pergunto: porque alguém gostaria de deixar de ser LGBT? Porque alguém está
em sofrimento por ser LGBT?
Lembra
da discussão sobre o sofrimento humano no começo do texto? Se quisermos buscar
as causas do sofrimento humano precisamos olhar para o contexto, para as
condições externas que causam esse sofrimento. E tem um filme que se encaixa
perfeitamente nesse assunto.
O filme Orações para Bobby (Prayers for Bobby no original em inglês) é um filme de 2009, que conta a história baseada em fatos reais de Bobby Griffin, um jovem gay de 20 anos que se suicidou. A relação com sua mãe foi o foco do filme. Ela era uma mulher religiosa que, depois de descobrir a sexualidade do filho, tentou de tudo para “curá-lo”. Desde orações até psiquiatria, na tentativa de mudar quem seu filho era.
A questão que eu trago aqui é que no começo do filme
Bobby estava angustiado. Logo no começo do filme ele pensa em se matar ao
perceber que de fato se atrai por homens. Sua mãe o chamava de impuro, pecador,
e que a alma dele não seria salva se ele fosse desse jeito. Bobby no começo
queria mudar, e participou das tentativas de sua mãe. O motivo pelo qual ele
fez isso foi que, após sua mãe descobrir sua sexualidade, ela parou de trata-lo
da maneira como tratava, as coisas tinham mudado, ela não aceitava quem o filho
era. Ele queria que a mãe o aceitasse, queria que as coisas fossem como antes.
Bobby encontrou orgulho em quem era, mas as coisas não mudaram em sua família.
Depois de seu suicídio sua mãe se informou melhor sobre o assunto. Encontrou
uma igreja que tinha uma interpretação diferente da dela, e com um grupo de
pais e amigos de LGBTs ela compreendeu que não havia nada errado com seu filho,
inclusive começou a lutar pelos direitos LGBT depois disso. Bobby não sofria
porque era gay, Bobby sofria por intolerância religiosa, por ter ouvido a vida
toda que homossexualidade era pecado.
A
angústia por ser LGBT é causada por uma sociedade que odeia e ataca LGBTs. A
“cura” para essa angústia não está em fazer alguém não ser mais LGBT, não está
no indivíduo, está nas relações que esse indivíduo estabelece com esse meio.
Precisamos mudar o meio. Se transexuais sofrem por medo dos constantes
assassinatos a essa população, o que precisa ser mudado é a negligência para
com sua violência, se uma lésbica sente vergonha de si, é preciso mudar o
discurso lesbofóbico que causou sua vergonha, se um bissexual sofre por ser
taxado de infiel e promíscuo, é preciso mudar os discursos bifóbicos que são
constantemente negligenciados, se um gay sofre por medo de não conseguir formar
uma família, precisamos mudar os moldes heteronormativos de família, e garantir
as condições legais para isso.
Perceba
que aqui eu sequer entrei na discussão a respeito de ser ou não uma escolha, de
ser ou não possível de ser mudado. Não importa. Nosso compromisso é para com as
razões do sofrimento humano. A prática de um psicólogo sério e compromissado
com o seu código de ética não é o de convencer alguém a mudar seu gênero ou
sexualidade, mas ajudá-lo a lidar com seu sofrimento e a estabelecer condições
para que seu cliente possa fazer as mudanças em seu meio, quando estas forem
possíveis. Só que seu trabalho (o de todos na verdade) precisa ir além,
pois enquanto vivermos em um dos países que mais mata LGBTs no mundo esse
sofrimento nunca vai deixar de existir. Precisamos combater práticas
transfóbicas, lesbofóbicas, bifóbicas e homofóbicas. Algumas circunstâncias
externas a gente não consegue mudar sozinho, e por isso, a luta nunca pode ser
solitária.
Notas
em behaviorês:
*
O Podcast ACearáCast tem um episódio sobre cura gay e a posição da análise do
comportamento. Link para o episódio: https://soundcloud.com/acearacast/acearacast-ep-49-cura-gay
Referências
CONSELHO
FEDERAL DE PSICOLOGIA. Resolução CFP N°
001/99, de 22 de março de 1999. Estabelece normas de atuação para os
psicólogos em relação à questão da Orientação Sexual. Disponível em
<https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/1999/03/resolucao1999_1.pdf>.
GARCIA,
M. R. V.; MATTOS, A. R. “Terapias de Conversão”: Histórico da
(Des)Patologização das Homossexualidades e Embates Jurídicos Contemporâneos. Psicologia: Ciência e profissão, v. 39,
n. 3, p. 49 – 61, 2019.
SKINNER, B. F. Emoção. In:_____. Ciência e comportamento humano.
São Paulo: Martins Fontes. 2003. p. 175 – 186.
Nenhum comentário:
Postar um comentário