17 de jul. de 2020

Timidez, comportamento humano e uma nobre ninja



Quando pensamos em uma pessoa tímida uma série de imagens nos vêm à cabeça. Alguém atrás de um grupo de amigos que não está interagindo com os demais. Alguém que frente a frente não mantém uma conversa duradoura, pois não sabe muito o que dizer. Também pode ser alguém que tem medo de chamar atenção para fazer alguma observação, algum questionamento. Diz-se de pessoas tímidas que elas têm dificuldade em se expressar. Se eu lhe perguntar, então, porque esta pessoa tem dificuldade de se expressar? Porque ela não interage da mesma forma que os outros? Porque fala pouco? Talvez a primeira coisa que lhe veio à cabeça foi: Ora, ela age assim porque é tímida! Dificilmente chegaremos a algum lugar com essa forma de raciocínio circular. Então o que explica o quê nessa história.

Para a Análise do Comportamento, nossos comportamentos não são frutos de agentes internos, de estados de espírito, tão pouco traços de personalidade (Skinner, 2003a). Buscamos as explicações para um comportamento na maneira como esse comportamento foi aprendido ao longo da vida desse sujeito, em que contextos esse comportamento ocorre, como esse comportamento se apresenta, e as consequências deste comportamento para a própria pessoa e para as pessoas ao seu redor (FONSECA; NERY, 2018).

Se dizemos que uma pessoa é tímida, é porque percebemos uma regularidade em seu comportamento, mas essa regularidade não é explicada pela timidez em si, mas pela história de vida do sujeito que se comporta, mais especificamente como seu comportamento de falar e se expressar foi construído. Skinner pouco fala sobre timidez ou introversão de maneiras muito específicas, mas descreve que históricos de punição constantes podem tornar as pessoas inibidas, tímidas ou taciturnas (Skinner, 2003b). Em outro texto ele aponta que o autoconhecimento é de origem social, e, nesse sentido, diferentes grupos de pessoas podem ensinar seus membros a falar sobre si para os outros (e para si mesmos) de maneiras diferentes, com isso produzindo indivíduos mais introvertidos ou extrovertidos, com níveis diferentes de introspecção (Skinner, 2006).

O que isso tudo nos diz então? Que são nossas relações sociais que modelam nosso comportamento de nos expressar. Pessoas consideradas tímidas geralmente tem medo de se colocar no centro das atenções, por receio de que consequências aversivas na forma da rejeição do outro possam surgir em suas interações (GOUVÊIA; NATALINO, 2018). Esse receio não vem do nada, não vem da timidez em si, mas dos contextos no qual uma pessoa foi punida ao se expressar. Esse medo de se expor e se colocar em algumas relações pode causar prejuízo na construção de vínculos com outras pessoas (FONSECA; NERY, 2018). Vou dar um exemplo do que estou querendo dizer aqui com uma querida personagem de um anime famoso.

Essa é Hinata, uma personagem fictícia do anime e mangá Naruto, criada por Masashi Kishimoto. Sem entrar em muitos detalhes aqui, ela é uma ninja herdeira de um dos clãs mais influentes de sua vila, e por conta disso é esperado dela que seja forte, habilidosa e confiante. Porém, contra essas expectativas, vemos Hinata como uma pessoa tímida, retraída e gentil. A cobrança de sua família, e as expectativas colocadas sobre ela para que seja uma ninja formidável são muito grandes. Sua gentileza e fraqueza em combate são criticadas e tidas como inaceitáveis para uma sucessora, inclusive sendo o motivo pelo qual lhe foi tirado seu direito de ser herdeira do clã. Portanto, muitos dos comportamentos dela foram punidos por sua família, principalmente aqueles relacionados a maneira como ela se comportava com os outros. Imagina você ser gentil com alguém e seu pai te olhar desse jeito:

         Apesar disso, Hinata não deixou de ser gentil, mas seu repertório de comportamentos relacionados a se comunicar foi prejudicado e reduzido, e isso pode ajudar a entender (de um ponto de vista comportamental) porque ela é tão tímida.

Minha intenção aqui não é substituir uma explicação circular por uma explicação completamente linear, pois os comportamentos tímidos, assim como quaisquer outros comportamentos, são fluídos, contextuais, e influenciados por uma diversidade de fatores atuais e passados.

        O meu ponto é que, mais do que nos colocarmos (ou os outros) como pessoas tímidas ou não tímidas por natureza, ou porque somos assim mesmo, a gente comece a se questionar: O que acontece quando tento me expressar? Quem me escuta? Quem dialoga comigo? Quem me reprime? Em que espaços me sinto seguro para me expressar? Que pessoas compõem esses ambientes? Existem momentos ou assuntos específicos que as pessoas me ouvem ou me ignoram? O que eu faço, ou posso fazer, para ser ouvido quando sou ignorado? E como eu tenho me comportado enquanto audiência? Quem eu escuto? Quem eu permito falar? Que tipo de pessoas dou atenção? Quem eu ignoro e porquê? Em que ponto e que medida dou condições para que as pessoas falem comigo? Em que medida não contribuo com a timidez do outro ou a minha?

Explicar o comportamento como uma relação entre uma pessoa e seu contexto (e esse contexto inclui outras pessoas) abre possibilidade de mudanças e enfrentamentos que dificilmente ocorrem quando usamos explicações internalistas, de traços de personalidade imutáveis.


Referências:

FONSECA, F. N.; NERY, L. B. Formulação comportamental ou diagnóstico comportamental: um passo a passo. In: de-FARIAS, A. K. C. R.; FONSECA, F. N.; NERY, L. B. Teoria e formulação de casos em análise comportamental clínica. Porto Alegre: Artmed, 2018. p. 55-97.

GOUVÊA, P. J. S.; NATALINO, P. C. Ansiedade social como fenômeno clínico: um enfoque analítico-comportamental. In: de-FARIAS, A. K. C. R.; FONSECA, F. N.; NERY, L. B. Teoria e formulação de casos em análise comportamental clínica. Porto Alegre: Artmed, 2018. p. 400 - 438.   

SKINNER, B. F. Função versus aspecto. In:_____. Ciência e comportamento humano. São Paulo: Martins Fontes. 2003a. p. 211 – 221.

SKINNER, B. F. O eu e os outros. In:_____. Sobre o behaviorismo. São Paulo: Cultrix. 2006. p. 145 – 162.

SKINNER, B. F. Psicoterapia. In:_____. Ciência e comportamento humano. São Paulo: Martins Fontes. 2003b. p. 391 – 417.



 
Notas em behaviorês:

* Muito sobre a discussão de timidez e introspecção pode ser encontrado em textos que tratam de ansiedade social, como o texto de Gouvêa e Natalino acima.

* Pode ser difícil usar esse tipo de análise em personagens fictícios, pois muitos deles são construídos com a ideia dos traços de personalidade, e por isso nem sempre seus comportamentos são justificados por sua história de vida.


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